segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Uma redondilha menor do poeta Claudio Sousa Pereira, de teor metafísico. Tema que o poeta vai desenvolvendo cada vez com mais sutileza e personalidade. 

SENTIDA MÚSICA

Intuída na mente
Escapa ligeira
Tão pouco se sente
Música faceira,

Momento epifânico,
Um susto, de leve,
É menos que pânico
Melodia breve

Faz contemplativa
De sabor empírico,
Figura cativa
Ao guiar o espírito.

Flui no pensamento
Envolvente ao fundo
Que, tão puro e isento
Movimenta o mundo

És força animada
Instintiva vida
Sutil forma alçada
Apenas sentida

Mas pouco se explica,
Na epiderme toca
Nos sentidos fica
Que sugere e evoca

Ó canção extrema,
Que contemplo o mínimo
De todo sistema
Só conheço o ínfimo.

Quanto mais conheço
Tal fator divino
Mais eu desconheço
Sobre meu destino.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Abaixo um soneto do meu querido amigo Claudio Sousa Pereira. É interessante perceber o quanto Claudio domina a forma, sua música e clareza. Poeta que não se constrange ao fazer uso de rimas ricas. Veja o exemplo de "tempos idos" com "esqueci dos". Suas metáforas vão perdendo a ingenuidade e ganhando em densidade e agudeza. Explico: a relevância da observação poética traduzida em nomeação precisa. A numeração exemplar dos três primeiros versos, a reflexão no início da segunda estrofe e a metáfora notável em sua simplicidade no verso "A vida, grande colcha de retalhos". Nos dois tercetos, apesar da nota melancólica daquela "vida, colcha de retalhos" não resulta em pessimismo, mas o sujeito poético é "sobrevivente de" si "mesmo". Olho nesse rapaz! 

RETALHOS
               
Uma árvore frondosa, além notória,
Um avô, uma casa, um sonho, um cão,
Um céu azul a constituir a história
E sempre altissonante em emoção;

Mesmo que seja nos momentos falhos
Em tudo estabelece um sentimento
Que costuramos a todo o momento
A vida, grande colcha de retalhos.

Retalhos que se vão dos tempos idos
Perdendo um por um. E inda me esqueci dos
Tantos, que desfizeram-se tais a esmo...

Árvore morta. Jazem sonhos mortos.
O que me sobra são resquícios tortos
De ser sobrevivente de mim mesmo.


quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Retirei os poemas abaixo do livro Líricas portuguesas I, com seleção, prefácios e apresentação do incansável, magistral e notável poeta, crítico de história, literatura e cultura geral, tradutor, romancista, contista, dramaturgo Jorge de Sena. Sim, ele era tudo isso e um pouco mais. Por que Sophia? Pela serenidade limpa da grande maioria dos seus poemas, pelo tônus ético, pela firmeza vocabular e pela exatidão simples de utilizá-lo como um encaixe perfeito na frase. Segundo Jorge de Sena, "[...] segurança fluente e escultural, os seus poemas transfiguram uma realidade muito concreta, em que o amor da vida e da exigência moral encontra símbolos marinhos e aéreos, usados com uma força inspirada excepcional [...]". 

[OUVE]

Ouve:
Como tudo é tranquilo e dorme liso.
Claras as paredes, o chão brilha,
E pintado no vidro da janela, 
O céu, um campo verde, duas árvores.
Fecha os olhos e dorme no mais fundo
De tudo quanto nunca floresceu.
Não toques nada, não olhes, não te lembres.
Qualquer passo
Faz estalar as mobílias aquecidas
Por tantos dias de sol inúteis e compridos.

Não se lembres, nem esperes,
Não estás no interior dum fruto:
Aqui o tempo e o sol nada amadurecem.

(Coral, in Antologia)

LIBERDADE
Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade. 

(Mar Novo)

EXÍLIO

Quando a pátria que temos não a temos
Perdida por silêncio e por renúncia
Até a voz do mar se torna exílio
E a luz que nos rodeia é como grades

(Livro Sexto)

Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004)

sábado, 4 de setembro de 2010

ARTE POÉTICA III (1964)

«A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro do qual estava
poisada em cima duma mesa, uma maçã enorme e vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e inteira. Não era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a própria presença do real que eu descobria. Mais tarde a obra de outros artistas veio confirmar a objectividade do meu próprio olhar. Em Homero reconheci essa felicidade nua e inteira, esse esplendor da presença das coisas. E também a reconheci intensa, atenta e acesa na pintura de Amadeo de Sousa-Cardoso. Dizer que a obra de arte faz parte da cultura é uma coisa um pouco escolar e artificial. A obra de arte faz parte do real e é destino, realização, salvação e vida. Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. Aquele que vê o fenómeno quer ver todo o fenómeno. É apenas uma questão de atenção, de sequência e de rigor.
E é por isso que a poesia é uma moral. E é por isso que o poeta é levado a buscar a justiça pela
própria natureza da sua poesia. E a busca da justiça é desde sempre uma coordenada fundamental de toda a obra poética. Vemos que no teatro grego o tema da justiça é a própria respiração das palavras.
 
Diz o coro de Ésquilo: «Nenhuma muralha defenderá aquele que, embriagado com a sua riqueza, derruba o altar sagrado da justiça». Pois a justiça se confunde com aquele equilíbrio das coisas, com aquela ordem do mundo onde o poeta quer integrar o seu canto. Confunde-se com aquele amor que, segundo Dante, move o sol e os outros astros. Confunde-se com a nossa fé no universo. Se em frente do esplendor do mundo nos alegramos com paixão, também em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixão. Esta lógica é íntima, interior, consequente consigo própria, necessária, fiel a si mesma. O facto de sermos feitos de louvor e protesto testemunha a unidade da nossa consciência.

A moral do poema não depende de nenhum código, de nenhuma lei, de nenhum programa que
lhe seja exterior, mas, porque é uma realidade vivida, integra-se no tempo vivido. E o tempo em que vivemos é o tempo duma profunda tomada de consciência. Depois de tantos séculos de pecado burguês a nossa época rejeita a herança do pecado organizado. Não aceitamos a fatalidade do mal. Como Antígona, a poesia do nosso tempo não aprendeu a ceder aos desastres. Há um desejo de rigor e de verdade que é intrínseco à íntima estrutura do poema e que não pode aceitar uma ordem falsa.

O artista não é, e nunca foi, um homem isolado que vive no alto duma torre de marfim. O artista, mesmo aquele que mais se coloca à margem da convivência, influenciará necessariamente, através da sua obra, a vida e o destino dos outros. Mesmo que o artista escolha o isolamento como melhor condição de trabalho e criação, pelo simples facto de fazer uma obra de rigor, de verdade e de consciência, ele está a contribuir para a formação duma consciência comum. Mesmo que fale somente de pedras ou de brisas a obra do artista vem sempre dizer-nos isto: Que não somos apenas animais acossados na luta pela sobrevivência mas que somos, por direito natural, herdeiros da liberdade e da dignidade do ser.

E tendo começado por saudar os amigos presentes quero, ao terminar, saudar os meus amigos
ausentes: porque não há nada que possa separar aqueles que estão reunidos por uma fé e por uma esperança.»

(Texto lido em 11 de Julho de 1964 no almoço de homenagem promovido pela Sociedade
Portuguesa de Escritores, por ocasião da entrega do Grande Prémio de Poesia, atribuído a Livro
Sexto).

Sophia de Mello Breyner Andresen

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